Arte Atual Festival
"QAP: Tá na escuta?"




05.05.2017 - 21.05.2017
 
collective exhibition curated by Luise Malmaceda, Paulo Miyada, Priscyla Gomes e Theo Monteiro
(Núcleo de Pesquisa e Curadoria) 


with:
Aleta Valente
Daniel Jablonski
Henrique Cesar
Ícaro Lira/Júlia Coelho
Raquel Nava/Cila MacDowell
Renata Cruz

Instituto Tomie Ohtake
São Paulo, Brasil

 
Complexo Aché Cultural - Instituto Tomie Ohtake
Arquitetura de Ruy Ohtake / 2003



Text for "Audioguia" soundwork made in collaboration with Ícaro Lira and Luísa Puterman.  





Todos os dias, por volta das 17h30, era quase igual. Uma luz cor-de-rosa invadia o apartamento refletindo nas paredes do quarto e da sala. Era a hora do café, já sabia, do café e das duas pílulas que o Dr. Adolfo havia lhe receitado fazia alguns meses. Problema de pressão, ela respondia, hipertensa, mas fiel ao seu pingado.

Daquela luz, o que diziam era que se olhasse diretamente, podia cegar. Uma frequência insuportável aos humanos, embora fosse sedutora a sua cor. Insuportável porque seu efeito parecia maior que todas as nossas forças: gigante, autoritário, imbatível. Em nós causava uma sensação de letargia, de paz e silêncio, mas de um peso enorme, acima de tudo.

Foi no dia 30 de março de 2017 que cientistas australianos e britânicos publicaram um artigo sobre os efeitos do veneno de um peixe ornamental que vive em recifes de coral do Oceano Pacífico. Alguns peixes da espécie Fang Blenny, quando engolidos por seus predadores, podem escapar com uma mordida que os paralisa, pois liberam, por meio de glândulas associadas aos seus pequenos caninos, um composto similar à morfina e heroína. Nessa situação, seus predadores sofrem uma queda de pressão. Sem sentir dor, percebem-se confusos e incapazes. Paralisados. Silêncio e paz.

Foi 2001 o ano de inauguração do Complexo Aché Cultural. Situado no bairro de Pinheiros, o conjunto de prédios, idealizado e financiado pelo Aché Laboratórios Farmacêuticos, abriga em sua torre central um instituto cultural. Embora conhecido pelo nome de uma artista e comprometido com o seu legado, o Instituto se instala em um projeto arquitetônico que se vale predominantemente do magenta, cor que define a identidade visual da marca.

As placas de vidro que compõem a fachada dessa torre possuem uma propriedade reflexiva, emitindo, todos os dias, por volta das 17h30, uma luz cor-de-rosa, alcançando, aproximadamente, um raio de 2 km. É um novo tratamento que ainda está em fase de testes. E corre em sigilo, embora já afete os moradores do bairro. Serviria como uma alternativa aos remédios sintéticos, às cápsulas, às embalagens de plástico, aos compostos químicos nocivos ao organismo.

Simbolicamente, o magenta está ligado à espiritualidade e à intuição, remetendo ao mundo metafísico. Em tempos ancestrais foi ligada a alquimia e a magia, a energia cósmica e a inspiração espiritual. Segundo estudiosos, a cor auxilia na purificação e cura, nos níveis físico, emocional e mental.

Um ano antes da inauguração do Complexo Aché Cultural, descobriam, em uma obra de revitalização do parque da Luz, um aquário subterrâneo abandonado. Ricardo Ohtake, irmão do arquiteto responsável pelo projeto do Complexo Aché Cultural, Ruy Ohtake, e também filho da artista que dá nome ao instituto cultural do complexo, Tomie Ohtake, foi secretário municipal do verde e do meio ambiente da época e esteve à frente da reforma. Hoje, assim como o prédio magenta, o aquário é parte integrante do conjunto de estratégias para novos modelos de tratamento de saúde, desenvolvido pelo setor de neurociência do laboratório farmacêutico.

Construído na década de 1880, o aquário foi projetado como um dos muitos pontos de lazer do Jardim da Luz, e recebe hoje, em sua maioria, idosos aposentados, famílias de imigrantes e jovens desencantados de sua própria juventude. Seu Felipe costuma visitar o aquário todos os domingos: “É bom pra distrair. Escolho uma das janelas e daqui fico no meu canto, acompanhando os peixes.” Layza, de 17 anos, prefere dar um tempo no aquário antes de voltar pra casa no fim da tarde depois da aula, quer ficar sozinha, em paz. Apoia a testa no vidro, os braços na mureta, e ali fica por mais 50 minutos na companhia de seu mp3 player.

O acesso ao aquário se dá por uma espécie de caverna construída com pedras artificiais, produzidas em cimento, e sua arquitetura segue o estilo do jardim, paysager, modelo inglês de época que exacerba a imitação da natureza. Lá dentro, você se percebe em um estreito e mal iluminado corredor, rodeado por paredes rochosas e úmidas, dividindo com os peixes a sensação de estar submerso. Do fundo do lago, através do vidro que te separa dele, emana uma luz verde-azulada, eventualmente modificada pela interferência de peixes dourados, prateados, muito brancos ou muito pretos que ali habitam.

O laboratório vem desenvolvendo estudos sobre os efeitos da exposição à determinadas frequências de luz, de que maneira alteram o funcionamento de nosso cérebro, como tais efeitos poderiam ser manejados e direcionados para tratamentos de saúde. A tais esforços se somam as pesquisas da síntese de analgésicos a partir de compostos naturais, como por exemplo o veneno indolor do Fang Blenny, espécie de peixe que habita a Costa do Pacífico. “Estamos diante do esgotamento de um modo de vida, a indústria farmacêutica não poderia ficar indiferente à isso.”

Dona Dorinha não sabia, mas fazia parte do experimento. Morava numa rua próxima à Praça dos Omaguás e habitava um apartamento de tamanho razoável, não fossem suas coleções de garrafas e caixas de cereais que ocupavam mais da metade do espaço. Tinha certa dificuldade para se locomover dentro da própria casa, mas fazia questão de garantir que seu quadro preferido, cópia de uma pintura da artista Tomie Ohtake, pendurado na parede da sala, estivesse à vista. “Comprei em uma molduraria da Teodoro, já vai mais de 20 anos. Hoje já deve valer uma fortuna, mas não vendo por preço nenhum.” Acontece que Dona Dorinha era acumuladora, e além do transtorno era também hipertensa e tinha crises de ansiedade.

Dona Dorinha costumava sair a passeio pelo bairro. Mas tinha que ser cedo, ali por volta das 6 da manhã, quando a rua ainda era tranquila e silenciosa. Andava devagar e não gostava de se sentir mal por isso. Mas também, justiça se faça, acordava sempre antes do sol nascer. Não tinha despertador nem passarinho, já era o costume de se levantar de imediato, sempre na mesma hora, pra tomar três dos doze comprimidos que administrava diariamente. Depois do banho, o destino da caminhada era certo: Padaria Cisne. Ali, Dona Dorinha conhecia todo mundo: Carlinhos, do balcão, Soraia, do caixa, Margarete, dos frios. Era talvez a cliente mais antiga, e parecia sustentar, com alegria, esse título.