Índigo: Sergio Pinzón
co-curated with Renan Araujo
Hena, Cássia, Ingrid*
Saiu do serviço às cinco horas da manhã engasgada pela secura dos químicos. O setor pelo qual se dedica já há trinta anos tem um odor característico de enxofre. O turno da noite é restrito ao operacional técnico e logístico. Os executivos que controlam o capital ficam com a luz do dia. Hena, como de costume, varre o pó branco que se acumula em sua mesa em direção ao aspirador acoplado à parede. Aperta o passo, seu voo sairá em breve. Retornará em poucos dias. A "Conferência Nacional do Setor Têxtil & Confecções" fora um fracasso, ninguém mais suporta ouvir as mesmas coisas. Há alguns anos Hena havia organizado a “Conferência Brasileira de Ventriloquia”. Projeto antigo. Conseguiu um aporte financeiro da norte-americana Mallory Lewis, mas devolveu todo o dinheiro após sofrer sérias acusações de que plagiava um personagem australiano chamado Sid Caver. Sid era uma criança escoteira, louca pelas canções de Frank Sinatra. Nunca foi um plágio. E se fosse, a habilidade de Hena em fazer uma voz de canto de boca de uma criança cantando Sinatra em um inglês impecável já seria digna de prêmios ou convites para talk shows.
Hena também era raver. Frequentava algumas festas, mas só ia se fosse daquelas de praia. O negócio dela eram as tendas, ficava perdida com a variedade de desenhos, de tecidos de cores berrantes e tramados que às vezes formavam mandalas gigantes esticadas ao vento, tie-dyes, borboletas. E o mar e o céu e todos os tons de azul que conhecia com a palma das mãos, Hena era ótima nos degradês, sabia como ninguém fazer uma lavagem artística. Numa dessas conheceu Cássia, uma mulher loira que beirava os 60, ria muito alto e tinha um espírito acolhedor, também fascinada por fantoches. Ela e Hena já haviam se visto em outras festas, em muitas outras, porque o fato de Cássia usar sempre a mesma saia jeans clarinho de barra desfiada chamava bastante a atenção de Hena. Hena queria saber o porquê, se era um ritual, se era por causa de alguma promessa, um talismã, ou se fazia parte de sua filosofia de vida e afinal que filosofia seria essa. Também porque já imaginava todas as conversas que poderiam ter, afinal foram trinta anos na lida com o denim; Hena era escolada e queria, sempre que possível, certificar-se de que realmente era. Mas o primeiro assunto nem foi esse.
Nesse ano em que se conheceram, Cássia havia finalmente decidido levar junto com ela um dos bonecos que manipulava. Caco: uma homenagem àquele famoso sapo verde. Traçar um perfil psicológico de Caco é tão difícil quanto entender como Cássia conseguia fazer a voz do personagem sem nem sequer mexer um único músculo do rosto. Hena achou fantástico, primeiro porque nunca tinha pensado que talvez pudesse fazer o mesmo – na verdade ela via um certo charme em separar suas três identidades: a assalariada, a ventríloqua, a raver –: unir dois de seus hobbies prediletos – ela odiava essa palavra hobby, não eram "hobbies" – de uma só vez, e segundo porque a performance de Cássia era boa mesmo, e que coragem tinha aquela mulher! Hena viu ali uma amiga. Cássia gostou do aspecto cansado de Hena, os cabelos já brancos mal-pintados de laranja, a voz rouca de fumante, tinha um sofrimento ali que achava bonito e que lhe tocava particularmente. Ria altíssimo sempre que ouvia a 'criança cantando Sinatra' de Hena e juntas ensaiavam algumas cenas.
É a partir da década de 80 que surgem as primeiras lavanderias industriais de índigo. Ingrid, uma das colegas de trabalho de Hena e responsável pelo setor de criação, acompanhou esse processo. As lavanderias industriais buscam reproduzir nas peças os efeitos do tempo, como se tivessem sido naturalmente desgastadas pelo uso. É como pensar que seu jeans tem história e você também, a maciez do tecido gasto e o espírito de experiência lhe trazem aconchego e sabedoria. As lavagens recebem nomes que indicam a sua ação sobre o tecido: Lixa, Laser, Jato de areia, Used, Ralado e puído, Amassado, Estonado, Pinado, Bigode 3D – essas duas últimas, batizadas por Ingrid.
Hena apareceu no departamento com uma nova cor de cabelo, é o Strawberry Blonde, ela disse, misturei dois tonalizantes dessa vez. Já fazia dez anos que Ingrid usava a mesma cor. Desde que os fios brancos se tornaram maioria, resolveu adotar um tom escuro meio azulado. Ingrid deve ter caído no barril de coloração das novas peças de inverno! Sempre que se encontram no Mangabody às terças à noite, imaginam o futuro próximo. Ingrid já tinha até entrado com o pedido de aposentadoria junto ao INSS. As três se mudariam em breve para um predinho próximo à Praia dos Amores, em Balneário Camboriú. Fazem planos desde as férias de 2011, quando visitaram o litoral de Santa Catarina. Fizeram um pacto: aqui será o nosso descanso durante a velhice.
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* Henna, Cássia e Índigo são plantas que liberam pigmentos que possuem uma boa fixação em fios de cabelo. Têm sido utilizados como alternativa aos tonalizantes industriais.