Menas
A solo show by Alice Shintani
Galeria Marcelo Guarnieri, São Paulo, Brasil , 2017
Na geometria, a linha reta é a mais
simples de todas as linhas, sendo
definida como: “um conjunto infinito de pontos”. A partir dela, nos
localizamos no tempo e no espaço,
organizando, com frequência, nosso raciocínio, leitura e experiência em noções como linearidade,
progressividade e racionalidade. A linha reta é só uma forma, mas
tem o poder de organizar todo um
modelo de pensamento.
O antes e o depois, a pergunta e a resposta, o certo e o errado: pontos em oposição que delimitam linhas até então infinitas. São como ferramentas que servem para nos situar no mundo: pontos fixos, placas de sinalização, manuais, cartilhas. No entanto, constatamos que quando as certezas são muitas, sobra pouco espaço para imaginar. O texto de exposição que se propõe a explicar alguma coisa, talvez seja uma dessas ferramentas que torna a experiência estética um pouco automática ou previsível. Uma linha reta que tem inicio, meio e fim. As palavras podem surgir gigantes diante dos trabalhos aos quais se referem, poderosas e autoritárias, mas podem também construir curiosos arranjos entre os registros verbal e visual.
“Menas”, palavra que dá título a exposição de Alice Shintani, é um desses exemplos. Sem classificação no dicionário, “menas” pode ser utilizada tanto como o femi- nino de “menos” dentro de uma linguagem coloquial, quanto como expressão que denota ironia a algo que está sendo superestimado. “Menas” se define, portanto, como uma palavra intermediária, banida da norma culta, circula por espaços pouco legitimados, e embora a própria palavra pareça, algumas vezes, não se levar a sério, pode assumir uma força crítica em determinadas situações. Para os ouvidos mais rigorosos, “Menas” pode soar incomum ou desagradável, causar uma perturbaçã tal qual a linha reta que, ao sofrer alguma interferência, é distorcida: sinal pirata, linha cruzada, radiação.
É por via das contaminações e envolvimentos que o trabalho de Shintani opera, seja quando faz uso de catálogos de exposição ou dos postes da praça como suporte para suas pinturas; quando escolhe caixas de mercadorias conforme sua origem, produto e qualidades gráficas para compor com as suas Sanfonas; ou quando intercala em seu Instagram – um dos espaços de trabalho da artista – fotografias de pratos de comida e de obras capturadas a partir do mesmo ângulo. Aproximar-se da prática de Shintani é permitir-se imaginar uma linha do tempo que segue por direções múltiplas, desmembrando-se aqui e ali, gerando novas conexões e significados. Hiperlinks.
É possível elaborar uma nova gramática a partir do trabalho de arte? Uma gramática que nos possibilite ler a partir das cores e das formas ou ver a partir do que o corpo sente no espaço? As Sanfoninhas, quando espremidas, compõem um tipo de código colorido secreto que, por mais que pareça decifrado no momento em que as dobraduras se planificam, não deixa de ser, enquanto código mesmo, já uma mensagem. Por vezes as Sanfoninhas se agrupam em caixas, podendo ser rearranjadas conforme qualquer vontade; é como se cada combinação desse conta de provocar em nós estímulos diversos, que associados, produzem significados. No espaço, se espalham sobre caixas de papelão dispostas em zigue-zagues pouco ordenados, demandando de nós uma leitura multilinear, um olho “destreinado”, corajoso em se perder. Até mesmo as palavras que estampam as caixas dos produtos de limpeza e de alimentação não se pretendem literais, funcionam como pontes de acesso a símbolos, questões afetivas, sociais e políticas, gerando uma espécie de ambiente polifônico, embora o silêncio da galeria de arte seja quase absoluto.
A configuração labiríntica que experimentamos em “Menas” – dos arranjos do espaço aos arranjos das pinturas e suas distorções – nos encoraja a inventar outro sistema de navegação. Tudo aqui parece vibrar: os objetos nos corpos, os corpos nas cores, as mãos aos olhos, os vincos e as dobras, o chão, o teto e a luz. Vibra e ressoa, perturba, acalma, motiva. Investimos energia naquilo que observamos, tocamos, sobre aquilo que pensamos e de volta somos investidos de suas energias. Não há mais pureza, só contaminação. Uma linha reta é pura forma? Experimente excluí-la de seu repertório. Uma forma não é só uma forma. Não é menos, só é menas.
**
In geometry, the straight line is the simplest of all lines, being defined as: “an infinite set of points”. As of its existence, we are able to locate ourselves in time and space, often organizing our reasoning, reading and experience in notions such as linearity, progressivity and rationality. The straight line is only one form, but it has the power to orga- nize an entire way of thinking.
Before and after, question and an- swer, right and wrong: opposition points that delimit lines that were until that moment infinite. They are like tools that serve to place us in the world: fixed points, signs, manuals, booklets. However, we find out that when the certainties are many, there is little space left to imagine. The exhibition text that purports to explain something is perhaps one of those tools that makes the aesthetic experience somewhat automatic or predictable. A straight line that has beginning, middle and end. Words can emerge giants in front of the works to which they refer to, powerful and imperative, but they may also construct curious arrangements between verbal and visual registers.
“Menas,” the title word for Alice Shintani’s exhibition, is one such example. Unclassified in the dictionary, “menas” can be used both as the feminine of “less” in a colloquial language, and as an expression that denotes irony to some- thing that is being overestimated. “Menas” is defined, therefore, as an intermediate word, banished from the cultured norm, circulates through little legitimized spaces, and although the word itself some- times seems not to take itself seriously, it may assume a critical force in certain situations. For the most rigorous ears, “Menas” may sound unusual or unpleasant, causing a disturbance such as the straight line that, when undergoing some interference, is distorted: pirate signal, crossed line, radiation.
It is through the contaminations and involvements that the Shintani’s work operates, whether she makes use of exhibition catalogs or the poles of a square as support for her paintings; when she chooses boxes of goods according to their origin, product and graphic quali- ties to compose with her Sanfonas; or when she insert into her Instagram - one of the artist’s workspaces - photographs of food and art works captured from the same angle. To approach Shintani’s practice is to allow yourself to imagine a time line that follows in multiple directions, dismembering here and there, generating new connections and meanings. Hyperlinks.
Is it possible to produce a new grammar as from the work of art? A grammar that enables us to read from the colors and shapes or see from what the body feels in space? The Sanfoninhas, when squeezed, make up a type of secret color code that, although it seems deciphered at the moment when the folds are planned, they are still, as code itself, already a message. Sometimes the Sanfoninhas are grouped in boxes, and can be rearranged according to any will; as if each combination was able to provoke diverse stimuli on us, that when associated, also produces meanings. In space, the Sanfoninhas are spread over cardboard boxes arranged in low-order zigzags, demanding from us a multilinear reading, an “untrained” eye, brave in losing itself. Even the words that stamp the boxes of cleaning and feeding products are not meant literal, they function as bridges of access to symbols, affective, social and political issues, generating a kind of polyphonic environment, although the silence of the art gallery is almost absolute. The labyrinthine configuration that we experience in “Menas” - from the arrangements of space to the arrangements of the paintings and their distortions - encourages us to invent another navigation system. Everything here seems to vibrate: objects on bodies, bodies in colors, hands on eyes, creases and folds, floor, ceiling and light. It vibrates and resonates, disturbs, calms, motivates. We invest energy in what we observe, touch, on what we think, and in return we are in- vested with its energies. There is no more purity, only contamination. Is a straight line pure form? Try to exclude it from your repertoire. A form is not just a form. No less, it’s just “menas”.
O antes e o depois, a pergunta e a resposta, o certo e o errado: pontos em oposição que delimitam linhas até então infinitas. São como ferramentas que servem para nos situar no mundo: pontos fixos, placas de sinalização, manuais, cartilhas. No entanto, constatamos que quando as certezas são muitas, sobra pouco espaço para imaginar. O texto de exposição que se propõe a explicar alguma coisa, talvez seja uma dessas ferramentas que torna a experiência estética um pouco automática ou previsível. Uma linha reta que tem inicio, meio e fim. As palavras podem surgir gigantes diante dos trabalhos aos quais se referem, poderosas e autoritárias, mas podem também construir curiosos arranjos entre os registros verbal e visual.
“Menas”, palavra que dá título a exposição de Alice Shintani, é um desses exemplos. Sem classificação no dicionário, “menas” pode ser utilizada tanto como o femi- nino de “menos” dentro de uma linguagem coloquial, quanto como expressão que denota ironia a algo que está sendo superestimado. “Menas” se define, portanto, como uma palavra intermediária, banida da norma culta, circula por espaços pouco legitimados, e embora a própria palavra pareça, algumas vezes, não se levar a sério, pode assumir uma força crítica em determinadas situações. Para os ouvidos mais rigorosos, “Menas” pode soar incomum ou desagradável, causar uma perturbaçã tal qual a linha reta que, ao sofrer alguma interferência, é distorcida: sinal pirata, linha cruzada, radiação.
É por via das contaminações e envolvimentos que o trabalho de Shintani opera, seja quando faz uso de catálogos de exposição ou dos postes da praça como suporte para suas pinturas; quando escolhe caixas de mercadorias conforme sua origem, produto e qualidades gráficas para compor com as suas Sanfonas; ou quando intercala em seu Instagram – um dos espaços de trabalho da artista – fotografias de pratos de comida e de obras capturadas a partir do mesmo ângulo. Aproximar-se da prática de Shintani é permitir-se imaginar uma linha do tempo que segue por direções múltiplas, desmembrando-se aqui e ali, gerando novas conexões e significados. Hiperlinks.
É possível elaborar uma nova gramática a partir do trabalho de arte? Uma gramática que nos possibilite ler a partir das cores e das formas ou ver a partir do que o corpo sente no espaço? As Sanfoninhas, quando espremidas, compõem um tipo de código colorido secreto que, por mais que pareça decifrado no momento em que as dobraduras se planificam, não deixa de ser, enquanto código mesmo, já uma mensagem. Por vezes as Sanfoninhas se agrupam em caixas, podendo ser rearranjadas conforme qualquer vontade; é como se cada combinação desse conta de provocar em nós estímulos diversos, que associados, produzem significados. No espaço, se espalham sobre caixas de papelão dispostas em zigue-zagues pouco ordenados, demandando de nós uma leitura multilinear, um olho “destreinado”, corajoso em se perder. Até mesmo as palavras que estampam as caixas dos produtos de limpeza e de alimentação não se pretendem literais, funcionam como pontes de acesso a símbolos, questões afetivas, sociais e políticas, gerando uma espécie de ambiente polifônico, embora o silêncio da galeria de arte seja quase absoluto.
A configuração labiríntica que experimentamos em “Menas” – dos arranjos do espaço aos arranjos das pinturas e suas distorções – nos encoraja a inventar outro sistema de navegação. Tudo aqui parece vibrar: os objetos nos corpos, os corpos nas cores, as mãos aos olhos, os vincos e as dobras, o chão, o teto e a luz. Vibra e ressoa, perturba, acalma, motiva. Investimos energia naquilo que observamos, tocamos, sobre aquilo que pensamos e de volta somos investidos de suas energias. Não há mais pureza, só contaminação. Uma linha reta é pura forma? Experimente excluí-la de seu repertório. Uma forma não é só uma forma. Não é menos, só é menas.
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In geometry, the straight line is the simplest of all lines, being defined as: “an infinite set of points”. As of its existence, we are able to locate ourselves in time and space, often organizing our reasoning, reading and experience in notions such as linearity, progressivity and rationality. The straight line is only one form, but it has the power to orga- nize an entire way of thinking.
Before and after, question and an- swer, right and wrong: opposition points that delimit lines that were until that moment infinite. They are like tools that serve to place us in the world: fixed points, signs, manuals, booklets. However, we find out that when the certainties are many, there is little space left to imagine. The exhibition text that purports to explain something is perhaps one of those tools that makes the aesthetic experience somewhat automatic or predictable. A straight line that has beginning, middle and end. Words can emerge giants in front of the works to which they refer to, powerful and imperative, but they may also construct curious arrangements between verbal and visual registers.
“Menas,” the title word for Alice Shintani’s exhibition, is one such example. Unclassified in the dictionary, “menas” can be used both as the feminine of “less” in a colloquial language, and as an expression that denotes irony to some- thing that is being overestimated. “Menas” is defined, therefore, as an intermediate word, banished from the cultured norm, circulates through little legitimized spaces, and although the word itself some- times seems not to take itself seriously, it may assume a critical force in certain situations. For the most rigorous ears, “Menas” may sound unusual or unpleasant, causing a disturbance such as the straight line that, when undergoing some interference, is distorted: pirate signal, crossed line, radiation.
It is through the contaminations and involvements that the Shintani’s work operates, whether she makes use of exhibition catalogs or the poles of a square as support for her paintings; when she chooses boxes of goods according to their origin, product and graphic quali- ties to compose with her Sanfonas; or when she insert into her Instagram - one of the artist’s workspaces - photographs of food and art works captured from the same angle. To approach Shintani’s practice is to allow yourself to imagine a time line that follows in multiple directions, dismembering here and there, generating new connections and meanings. Hyperlinks.
Is it possible to produce a new grammar as from the work of art? A grammar that enables us to read from the colors and shapes or see from what the body feels in space? The Sanfoninhas, when squeezed, make up a type of secret color code that, although it seems deciphered at the moment when the folds are planned, they are still, as code itself, already a message. Sometimes the Sanfoninhas are grouped in boxes, and can be rearranged according to any will; as if each combination was able to provoke diverse stimuli on us, that when associated, also produces meanings. In space, the Sanfoninhas are spread over cardboard boxes arranged in low-order zigzags, demanding from us a multilinear reading, an “untrained” eye, brave in losing itself. Even the words that stamp the boxes of cleaning and feeding products are not meant literal, they function as bridges of access to symbols, affective, social and political issues, generating a kind of polyphonic environment, although the silence of the art gallery is almost absolute. The labyrinthine configuration that we experience in “Menas” - from the arrangements of space to the arrangements of the paintings and their distortions - encourages us to invent another navigation system. Everything here seems to vibrate: objects on bodies, bodies in colors, hands on eyes, creases and folds, floor, ceiling and light. It vibrates and resonates, disturbs, calms, motivates. We invest energy in what we observe, touch, on what we think, and in return we are in- vested with its energies. There is no more purity, only contamination. Is a straight line pure form? Try to exclude it from your repertoire. A form is not just a form. No less, it’s just “menas”.