Museu dos futuros possíveis


Texts in collaboration with Renan Araujo
Collective exhibition curated by Paulo Miyada (Instituto Tomie Ohtake)
works by Pedro França, Camila Sposati, Eduardo Kac, Gabriela Bilá, Gisela Mota e Leandro Lima.
Brasília, Brasil, 2018

    
Detalhe de  "Mercadorama" (2018) de Pedro França
© Naiara Pontes



Chave Phillips

Joênio, um rapaz de trinta e poucos anos, se apresentava todas as quintas-feiras como estátua viva na calçada da Rua XV. Não era muita a atenção que ganhava do público passante, não era, mas essa já havia deixado, há tempos, de ser uma questão que merecesse sua consideração. Faz 3 meses que ele recebeu, em seu chapéu, alguns trocados da mão de um homem especial. O homem possuía a tatuagem de uma chave Phillips no pulso, a mesma que Joênio havia feito quando completara 18. O homem tinha um bigode curto, mas cheio, logo abaixo do nariz, outra semelhança que compartilhavam. Joênio, no entanto, vestia paletó e chapéu-coco, e estava prateado da cabeça aos pés; Carlos, um macacão antigo e surrado. “Eu sou você de outros tempos, Charlie.” Mal deu tempo de avançar para abraçá-lo e lhe dizer “Finalmente!”. Joênio caiu no chão e, ao se levantar, percebeu que estava apenas diante de seu reflexo na vitrine.





























Esmerilhadeira


Seis horas da manhã, café na padaria, pão na chapa, os olhos ainda pregados de sono. Nunca souberam explicar como a esmerilhadeira conseguiu decepar a mesma mão que orquestrava o trabalho. Turno duplo, substituição do colega demitido, talvez fosse terça ou sexta-feira, a diferença é pouca. O corpo já cansado nem sentiu o membro no chão. Ouviu um grito: “Sangue!”. Trinta e quatro anos de empresa. Talvez um mecanismo sonoro pudesse servir como alerta no momento em que o perigo está à espreita.

 





Cão


Ontem, durante a madrugada, recebi um e-mail do meu cão Brutus. A mensagem, evidentemente criptografada, me aconselhava a fazer um adendo a minha palestra que seria proferida na manhã seguinte no Instituto de Geociências e Natureza de Brasília. O assunto do e-mail, um tanto dramático e distópico – típico do temperamento do Pastor Alemão – vinha grafado todo em caixa alta: VAMOS TODOS MORRER MUITO EM BREVE! No corpo do e-mail apenas o link para um artigo do The Guardian sobre a destruição dos mamíferos selvagens pelos humanos. Respondi de prontidão: BRUTUS, BRUTUS, BRUTUS, ÉS TUDO QUE TENHO NA VIDA, ESTAREMOS PARA SEMPRE JUNTOS!






 



Hiperlink

A cãibra que acomete a batata da perna durante as madrugadas de sono se dá pelo baixo nível de cálcio no sangue. O excesso de cálcio no sangue pode provocar o cálculo renal, as famosas “pedras” nos rins. O indiano Dhanraj Wadile detém o recorde de 172.155 pedras removidas do rim de um único indivíduo. Esse número é igual a um endereço de IP (Internet Protocol) localizado no Condado de Cook, no estado americano de Illinois. Cook, por sua vez, é uma palavra inglesa que significa cozinheiro ou cozinheira: o cozinheiro cozeu três tipos diferentes de vegetais durante a preparação do prato principal.








Fake News

No dia 1o de abril de 1983, a revista inglesa New Scientist divulgava a descoberta do “boimate”, resultado da combinação do gene do boi com o do tomate. Do processo, resultariam tomates com valor proteico quarenta vezes maior do que o de tomates comuns, e consumi-los seria como ingerir “filés ao pomodoro”. Teria sido um grande evento para a comunidade científica, mas era 1o de abril e tudo não passou de uma brincadeira. Vinte e seis dias depois, a revista brasileira Veja publicou a notícia do boimate como verdadeira, dando origem ao que hoje se conhece como a maior “barriga” da divulgação científica brasileira.







Hotel

O encontro do século aconteceu na noite de 11 de junho de 2018. Lucrécia, presidente do sindicato dos ourives, está à frente do maior fornecedor de ouro do mundo. Os dois líderes estão hospedados no luxuoso hotel Santaella di Fiori. Mesmo com os aumentos e novas taxações impostos pelo xeique, ambos estão esperançosos com o encontro. “Teremos uma excelente relação”, disse Lucrécia, que afirmou esperar um encontro “tremendamente exitoso”. O xeique disse que havia obstáculos para a reunião, mas “nós os superamos e estamos aqui hoje”.









∅ Esta mensagem não chegou por falta de gasolina

Montanhas de automóveis aglomeravam-se nas duas pistas da rodovia, por falta de espaço ocupavam também o canteiro central. Tudo parado. E acima deles, a névoa de poeira que o sol iluminava transversalmente por volta das 17h. A típica imagem do apocalipse dos filmes de Hollywood: um tsunami que engole a ilha de Manhattan. A cavalaria da polícia, que jamais se ausentaria em situações como aquela, saiu galante na foto do jornal: trajavam black, homens e cavalos. Mas desta vez, não! Passaram-se 7 dias e as chamas continuam ardendo. Decidiram pelo churrasco. E se organizar direitinho, todo mundo come.
















Alimento

Jacas transgênicas já não são mais perigosas para o cultivo, agora seguem sem gosto e sem peso, flutuam depois de adultas como isopor de proteção de eletrodoméstico. Já não caem em carros ou cabeças alheias. Não têm caroços, não fedem, não têm casca nem cor. Não são feitas para o consumo humano. São confundidas com sacos plásticos quando, em redemoinhos, giram em direção ao céu. Alcançaram a liberdade ao se tornarem reféns.









Atleta

“Uma atleta, comediante, modelo e poeta. A mais conhecida e famosa ativista dos direitos dos animais na Pérsia, promovendo o veganismo e o estilo de vida saudável e humano.”

Nasim Aghdam gostava de usar perucas, roupas elegantes e véus de noiva, ou robes de seda lilás, ou roupas para ginástica, ou apenas moletons. Em seus vídeos, irônica, ela dançava e cantava, fazia exercícios e também ensinava receitas veganas, sempre ambientada em cenários rudimentares, provenientes do universo digital pré-internet. Um tipo familiar para a arte contemporânea, mas um tanto bizarro para a cultura pop, onde havia escolhido atuar. No dia 3 de abril de 2018, Aghdam invadiu a sede do YouTube e atirou contra os trabalhadores, suicidando-se logo depois. Em janeiro de 2017, Aghdam havia acusado o YouTube de discriminação e criticado a plataforma por supostamente filtrar suas postagens: “Não há oportunidades iguais de crescimento no YOUTUBE”.








Faca de Peixe

A faca de peixe é um divisor de classes. A cabeça de bacalhau dos talheres. Imagine-se em uma sala de jantar na Londres de 1850: “Que lindo vestido!” “Não deixei de notar como lhe cai bem a cartola!” Depois de proferidos tais elogios, sentaram-se à mesa. “Que classe e elegância me parece ter o desenho deste artefato”, comenta Harold ao ver o talher. Do outro lado da mesa alguém balbucia: “Um ultraje que daqui a 100 anos tal clássico objeto habitará um quarto-sala junto ao aparelho de fondue”.






Haters

Chelsea Manning atualmente é uma mulher livre. As poucas imagens de seu Instagram nos mostram os últimos meses vividos fora da prisão militar de Fort Leavenworth: sua caminhada em solidariedade aos imigrantes, seu primeiro pedaço de pizza, su a escolha de roupas, suas selfies. Em cada imagem, centenas de comentários de incentivadores de sua nova jornada; na mesma proporção, haters expurgam toda a raiva e ódio a cada passo, a cada conquista. Manning está indo morar em Maryland, está à procura de um amor, segue dando entrevistas, jogando videogame, acessando e-mails e conhecendo novos lugares até então inimagináveis em seus 7 anos de reclusão.








Estômago

Baços anormalmente grandes. Águas cristalinas. Lanças afiadas espetam peixes de variadas espécies. Corpos geneticamente adaptados ao mergulho em águas profundas se entregam, determinados, à desconhecida imensidão abissal. Os Bajau vivem na Indonésia e passam até 60% do tempo de seus dias mergulhando para pescar. Em um restaurante na China agoniza um peixe ainda vivo no prato servido pelo garçom. Está estufado por esteroides que lhe injetaram assim que chegou a Hong Kong, mas ainda estava vivo. Foi capturado na Tailândia, desmaiou com o efeito do cianeto de potássio às vezes utilizado pelos Bajau para pescar, mas ainda estava vivo. Uma última lembrança das águas de Jaya Bakti lhe preencheu a alma antes de se entregar à desconhecida imensidão abissal.








“O futuro não ia ser assim”

Cavaloboys, nada a ver com cowboys, são na verdade os ex-motoboys. Não abandonaram seus capacetes nem suas mochilas de isopor, acoplaram ao outfit as botas de montaria. Estamos em 2018 e as hamburguerias ainda estão na moda. Pedir comida está a um clique, basta ter acesso à internet. Ninguém mais sai porque a gasolina acabou, as ruas estariam desertas, não fossem os moradores de rua e os cavaloboys. Burros de carga, um dia teriam sido. No ano de 2017 mais de um milhão e meio de brasileiros despencaram para nível social mais baixo, e a pobreza extrema e a fome voltaram a crescer no país.









Bitola

O ano é 2103 e novas linhas de metrô estão sendo construídas desde meados de 2026. As bitolas EC4003, versão de 2050, período em que foram adquiridas por Frederico V. Schirmer, engenheiro responsável pela implementação da linha Noroeste, entraram em desuso 20 anos depois de sua aquisição. Uma geração inteira não conheceu o uso desse maquinário. Sua construção e a posterior inutilização foram vistas apenas pelos trabalhadores contratados pela empresa ganhadora do concurso. Não teve corte de fita e tampouco foto para coluna social, as bitolas EC4003 caíram no esquecimento sem mesmo terem sua vida reconhecida.









Clube dos Notívagos

Na semana passada flagraram um grupo de javalis em busca de comida numa rua de Barcelona, na calada da noite. É um novo costume que desenvolveram entre eles: “assim a gente não precisa passar pela desagradável situação de lidar com um humano no meio do caminho”. Por terem tido seus territórios invadidos, já não podem mais evitar os humanos no espaço e agora os evitam no tempo. Alteraram suas rotinas e não saem mais das tocas durante o dia, só à noite, quando já certificados de que não serão incomodados. Motivados por essa novidade que havia se espalhado silenciosamente, 4 meses antes, entre os membros de um chamado “Clube dos Notívagos”, cinco publicitários resolveram lançar um novo produto: os parklets invisíveis. O produto foi lançado faz 3 semanas e já é um sucesso, agora os humanos podem observar os animais de camarote sem que sejam notados.








Máquina Supersônica

O artefato foi desenvolvido em colaboração por diversos especialistas – artistas, arquitetos e cientistas –, e seu uso está em fase de testes em seres humanos. Os efeitos colaterais presentes até o momento são estes: aparecimento de escamas na lateral do abdome, zumbido nos ouvidos como se fossem sirenes e profunda tristeza no período matutino. O que se espera é que em 5 anos o maquinário esteja pronto para ser comercializado em larga escala. A fila para a compra do produto já chega a 7 meses de espera. Note que seu uso está condicionado a épocas de alta temperatura.