O Formato Auditório






2016 - 2017

 


Em publicação organizada pelos integrantes do PIMASP
Programa Independente do Museu de Arte de São Paulo

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MASP
São Paulo, Brasil
 






Orquestra Sinfônica Brasileira, 1953
© Acervo Centro de Pesquisa do MASP  / Peter Scheier










Curso de Paisagismo, sem data
© Acervo Centro de Pesquisa do MASP  / Peter Scheier





As poltronas numeradas e fixas ao chão anunciam: estamos em um auditório. A luz baixa, o silêncio, o telão e o projetor. Sete fileiras de assentos projetadas para direcionar o nosso olhar ao mesmo fim: o palco. Neste auditório, aliás, pequeno auditório, não há palco. Não um palco tablado desses em que se pode subir, mas há ali uma mesa, às vezes um púlpito e outras vezes uma base cúbica preta, depende muito do dia. Importa dizer que, ainda assim, a distância entre aquele que se coloca à frente da plateia e a plateia propriamente dita se mantém. É um formato clássico e talvez adequado para alguns tipos de palestras, desde as mais acadêmicas até as motivacionais.

Segunda-feira o museu não abre. Dia de manutenção e de descanso. Muitas vezes, dia de silêncio nas salas expositivas, silêncio e vazio. Dia também dos seminários do Programa Independente do MASP (PIMASP), que duravam três horas e aconteciam naquele pequeno auditório. A cada semana, um de nós ia até o “palco” apresentar seu trabalho. Perguntas x Respostas. Fala x Escuta. Ação x Reação. Não havia como ignorar o formato auditório e seu peso sobre nossos corpos e comportamentos, sobre nossa forma de pensar e interagir, estivéssemos nós na plateia ou no palco. Difícil não relacionar essa divisão eu x vocês, no âmbito de um programa de formação, ao modelo clássico das salas de aula, onde se distinguem claramente os níveis de hierarquia.

Será que o estímulo à reflexão no âmbito de um programa de formação para artistas, curadores e pesquisadores que acontece dentro de um museu – o MASP, que atualmente passa por uma fase de reestruturação institucional – leva em conta o modelo no qual se estrutura? Afinal, seria menos sobre inventar maneiras de articular nossas pesquisas nesse espaço de troca, sobre imaginar outras formas de existência para elas – talvez até absurdas –, e mais sobre formatar o próprio discurso, “profissionalizar” a fala? Estabelecer o auditório como espaço exclusivo dos encontros do PIMASP é considerar que todo o resto do museu – pinacoteca, biblioteca, vão livre, escadaria, reserva técnica, área administrativa etc. – não interessa como espaço de formação? O auditório seria um tipo de símbolo que imprimiria a nós, artistas e curadores em formação, um tipo de respeito?







































 1. STEYERL, Hilo. “The language of things”. European Institute for Progressive Cultural Policies (eipcp), Viena, jun. 2006.

Estou tentando pensar sobre formas de ver e formas de tornar visível. Refletir sobre a relação intrínseca que existe entre sistemas de representação e autoridade considerando questões caras ao museu – display, discurso curatorial, espaços expositivos e não expositivos, programas de formação e mediação cultural.


O formato auditório caracteriza-se não só pela arquitetura e configuração espacial, mas também pelos objetos que ali existem. Os objetos, embora não falem a mesma língua que nós humanos, também comunicam. Estão carregados de forças e significados e sua comunicação consiste também em nos fazer fazer algo: falar de determinada maneira, por exemplo, ou posicionar o corpo de forma mais ou menos relaxada. Assim, passamos a vida sendo transformados por eles e também os transformando: uma poltrona que tem seu estofado amolecido pelo uso, uma mesa que tem sua lateral descascada por qualquer mão inquieta, um projetor de imagem que vai descalibrando suas cores com o tempo. O próximo que sentar naquela poltrona já não pode mais manter a coluna totalmente ereta; ao perceber a mesa descascada logo poderia pensar “deixemos as formalidades de lado!”; também não vai se dar conta de que aquilo que deveria ser magenta, na projeção, está verde. Por isso, falar do formato auditório é também falar dos objetos que o integram

“E se as coisas pudessem falar? O que nos diriam? Ou elas já falam e nós apenas não a escutamos? E quem irá traduzi-las?” [...] Segundo Benjamin, essa linguagem das coisas é muda, é mágica e seu meio é uma comunidade material. Assim, devemos assumir que existe uma linguagem de pedras, panelas e caixas de papelão. Lâmpadas falam como se habitadas por espíritos. Montanhas e raposas estão envolvidas em discurso. Arranha-céus batem papo uns com os outros. Pinturas fofocam. Existe mesmo, se quiser, além da linguagem comunicada pelo telefone, uma linguagem do próprio telefone.1

Escrever a partir dos objetos é como exercitar um pensamento que não ignora aquilo que pode estar fora do nosso controle, aquilo que não dominamos ou que temos dificuldade de traduzir pela ordem da racionalidade clássica. É também uma defesa pela forma, por entender que ela diz menos sobre caprichos, estilos ou tendências e mais sobre um posicionamento estético que é político.






Vista do pequeno auditório do MASP na Avenida Paulista, década de 1960
© Acervo Centro de Pesquisa do MASP 



 

Microfone

Foi em um dos seminários, quando, pela primeira e última vez durante o programa, ele foi utilizado. Tudo o que era falado dentro do pequeno auditório era transmitido pelos alto-falantes dos elevadores do museu – para alegria ou desgraça dos ascensoristas. Esse seminário aconteceu, extraordinariamente, numa terça-feira, dia em que o MASP costuma receber muitos visitantes por conta da entrada gratuita. É possível imaginar quantas não foram as pessoas que puderam, mesmo que por poucos instantes, ouvir o que se discutia dentro do pequeno auditório. Tudo correu bem durante as primeiras duas horas; o que veio depois disso é o que realmente interessa e o que vou contar a seguir.

Um dos celulares, aliás, importante dizer, plugado na tomada por um carregador, começou a tocar. Como estava no silencioso, ninguém entendia de onde vinha a insistente vibração que ressoava na caixa de som ligada ao microfone. O que aconteceu foi que o sinal do aparelho causou um tipo de interferência na caixa de som gerando um ruído, captado pelo microfone e amplificado pela mesma caixa de som. Microfonia: o tipo mais famoso de insurreição dos microfones.

O desespero durou dez minutos até que se descobrisse a causa da revolta. Isso provocou o maior dos desconfortos dentro dos elevadores, tornando impossível o transporte e acarretando na interdição de todos eles. Foi durante os mesmos dez minutos que se pôde vislumbrar uma grande massa de gente subindo e descendo as escadarias do museu, um descontrole total, tudo em decorrência de um celular em modo silencioso, um microfone e uma caixa de som.





Poltrona

Em meados dos anos 1990 o mercado brasileiro de poltronas de auditório sofreu um grande impacto, primeiro porque o Código de Defesa do Consumidor havia finalmente entrado em vigor e segundo porque chegava ao país a rede de cinemas estadunidense Cinemark. De lá para cá, profissionais do segmento têm desenvolvido algumas melhorias, buscando sempre a simplicidade, o conforto e a otimização do espaço.

Diferentemente de suas antepassadas que eram, como nos tronos de faraós, símbolo de poder, ou até mesmo de suas contemporâneas que habitam apartamentos e acolhem os corpos mais preguiçosos e molengos, as poltronas de auditório carregam consigo a fama de “duronas”. Mal nos acomodamos nelas e já podemos ouvir suas ordens: Ombros e quadris alinhados! Adapte a curvatura da coluna ao encosto! Joelhos diretamente abaixo do quadril! Se ameaçamos um movimento, elas rangem, afetando não só aquele que se senta ao seu lado – vocês estão tão próximos um do outro que podem até sincronizar a respiração – como todos os outros que se encontram no auditório até então silencioso.





Projetor

O projetor é desses objetos que possuem um tipo de funcionamento muito particular, semelhante ao das impressoras. Se em determinado momento ele não estiver disposto a operar algum tipo de função, ele não o fará. De nada vai adiantar pressionar o botão “reset”, ou qualquer outro, de maneira aleatória e desesperada a fim de resolver a situação. “Ah, peraí, como faço para alinhar esses cantos da imagem? Estão tortos!” O projetor está se recusando a adaptar-se aos seus padrões e nada o fará mudar de atitude. Aliás, não o importune por tanto tempo: se sua paciência atingir certa temperatura, ele pode se desligar automaticamente ou até, em casos mais extremos, queimar. E nós, sempre tão dependentes dos recursos que eles nos oferecem, ficamos na mão.

Os projetores têm esse papel de tornar as apresentações menos enfadonhas, permitindo aos espectadores alguma distração, ou um tipo de sedução de que só as imagens são capazes. Palavras escritas, tópicos, diagramas, números, tabelas, vídeos ou fotografias: qualquer coisa em que o espectador possa se apoiar, se agarrar, atormentado, a fim de facilitar o caminho à compreensão do encadeamento sonoro de palavras que alguém esteja proferindo lá na frente.

O projetor é essa caixinha enfurecida e mágica de luz, som e calor. Antes de chegar a algum anteparo, essa luz que sai lá de dentro atravessa um espaço ocupado por milhares de microrganismos que dividem conosco o ar, iluminando também outros tantos fiapos de poeira que pairam por aí. É a luz que transporta uma imagem ao mesmo tempo que é, como luz, já uma imagem.

Agora aconteceu o seguinte: A METADE DA TELA DIREITA exibe o filme normal, cor, luminosidade. A METADE DA TELA ESQUERDA fica com LISTRAS PRETAS E BRANCAS VERTICAIS. Já tentei desligar e religar, já tentei fazer o reset para os ajustes de FÁBRICA, mas a metade que tem as listras não sai de cima da imagem do filme.

É o que ele defende: um jeito particular de ver o mundo.
Metade colorido, metade preto e branco.





Telão

Ritmo PowerPoint e poder de abstração. Quem sabe não seríamos, no final das contas, dotadas de uma nova sensibilidade? Traduzir em palavras a materialidade de um objeto, saber reconstruí-lo dentro do espaço mental e se satisfazer de imediato. Dar à imagem o título de soberana, se curvar diante dela, suspirar e até mesmo brigar a seu favor. Dar à linguagem a materialidade desejada. Dispensar texturas, odores, dimensões. Desenvolver um tipo de dependência doentia pelo zoom. Ver o mais íntimo dos detalhes sem sair do lugar. Nada acontece se continuarmos caladas. Estamos ansiosas pela próxima fala, precisamos falar!

É um bloco de isopor lapidado com a forma de um iceberg. Um bloco de isopor pintado de uma só cor que pode assumir tons diversos dependendo da luz à qual for exposto, percebe? É um bloco de isopor cuja superfície deixa de ser porosa e passa a ser completamente plástica, pode sentir? É o cenário de uma festa de aniversário infantil. Display de uma loja de roupas para crianças. Brincadeira, essa peça está no museu.







Vista do palco do grande auditório sendo preparado para receber os mecanismos técnicos para teatro e cinema, década de 1970
© Acervo Centro de Pesquisa do MASP




 
















































































Depois do auditório

Outros tipos de experiências que vivenciamos no PIMASP talvez tenham me ajudado a refletir sobre a influência do formato auditório no desenvolvimento do programa.

A primeira foi quando um dos seminários aconteceu, dessa vez no auditório maior, em cima do palco, e pudemos nos sentar, todos, em cadeiras organizadas em semicírculo. Cada um podia definir o melhor ângulo de inclinação de seu assento em relação ao telão ou em relação ao restante do grupo; se quisesse, podia até mudar a cadeira de lugar. Vivíamos ali a primeira oportunidade de adaptar o espaço ao corpo. Estar no palco que já havia recebido importantes espetáculos, diante de uma enorme plateia de poltronas vazias, era, com certeza, uma experiência distinta. Era como se aquele palco – espaço que é pura potência, onde coreografias, peças de teatro ou apresentações musicais ganham vida – pudesse permitir que aquele momento do seminário fosse algo além de uma fala de artista programada. Era como estar no território da ficção, onde não existe certo ou errado, comentário incoerente ou pergunta previsível.


A segunda foi um tipo de passo adiante. Os auditórios do MASP são, com alguma frequência, alugados para eventos corporativos. Foi por esse motivo que tivemos que usar o palco do auditório maior naquela situação e, em outra ocasião, também um dos seminários foi realizado na sala expositiva do segundo andar do museu. Duas mesas grandes nos convidavam a sentar ao seu redor e nos permitiam espalhar em seus tampos vermelhos os cadernos e as garrafas de água, ao mesmo tempo em que relaxávamos as costas apoiando ali nossos cotovelos e braços. O segundo andar do museu, além de ser uma zona ativa por onde circulam os visitantes e onde se expõem as obras do acervo, é também o local onde estão localizados os preciosos e radicais cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi (1914-1992). Estávamos cercados por uma carga energética impossível de ser ignorada. Ali, lembrei que estava no MASP e que, de alguma forma, durante o período do programa, nós também fazíamos parte dele. Que o PIMASP não acontecia no museu apenas por ser um espaço físico capaz de nos reunir com os coordenadores, curadores e artistas importantes, ou por nos dar acesso às aulas do MASP Escola, mas por ser também um lugar carregado de história e de significados, e estar ali dentro pelo período de um ano era também se relacionar com essa história e com todos esses significados.

Então saímos do museu. A terceira experiência foi quando planejamos, como grupo, uma caminhada por alguns pontos da cidade como atividade de encerramento – a proposta surgiu a partir de uma conversa com Tobi Maier, um dos coordenadores do programa. A ideia era que cada um de nós escolhesse um lugar e uma atividade que fosse de interesse próprio. O evento era público, assim qualquer um podia se integrar ao grupo e acompanhar o roteiro. Foram doze horas distribuídas entre todos, de modo que a cada hora podíamos nos aproximar da pesquisa de cada um a partir do lugar escolhido. Entendi aquele momento como tão importante para a nossa formação como artista, curador, pesquisador etc. quanto foram os outros momentos pelos quais passamos no PIMASP dentro do museu. Era como exercitar uma maneira de falar do trabalho sem tê-lo como objeto, integrar-se à dinâmica da cidade como uma experiência estética, associar o discurso da prática de cada um a lugares, comidas, monumentos ou situações. Considerar o percurso e intervalo entre uma atividade e outra também como lugar de criação e troca. Imaginar, durante doze horas, um espaço comum, onde podíamos desenvolver outros tipos de conversa e interação que fugisse um pouco da “dureza” do formato auditório. A informalidade, no entanto, não demora em apresentar suas questões – falhas? Insuficiências? –, que, no final das contas, também acabam nos servindo como ótimos indicadores para o entendimento da dinâmica do programa. Afinal, que tipo de espaço comum – integrantes, coordenadores, museu, circuito das artes, cidade – foi esse que existiu dentro do PIMASP?