“E de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados.

E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles.

E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhe concedia que falassem.”




Virada, a solo show by Juliana Frontin
28ª edição do Programa de Exposições, Centro Cultural São Paulo, Brasil, 2018


Virada, 2018
aquário de bateria usado em igrejas neopentecostais de vidro temperado, compensado e estrutura metálica
5'16'' de viradas em loop
(percussão: Ricardo Tanganelli)



 


Em algumas igrejas neopentecostais, a bateria possui um tratamento singular. Diferente dos outros instrumentos com os quais divide o palco, fica mais ao fundo protegida por uma redoma de vidro – o aquário – cuja arquitetura é específica para atender às necessidades do culto. A propagação do som que produz é reduzida e seu vazamento para outros microfones é evitada, proporcionando aos músicos e aos fiéis aquilo que consideram um maior conforto auditivo.

Baterias são instrumentos elegantes, de seu conjunto de pratos e tambores reluzem dourados e metais e ao seu redor tudo se agita: mãos, pernas e baquetas. Por si só, a bateria já compõe uma figura especial, seu desenho pode nos fazer pensar em aracnídeos gigantes com patas metálicas ou insetos mutantes de antenas cymbálicas. Sentar em sua banqueta é aceitar o desafio de domar uma besta histérica, um bicho valente, ou apenas tirá-la de sua quietude e dar a ela enfim uma vida. Nesse encontro entre baterista e bateria toda forma de energia e de humores podem surgir, reverberando para além e alcançando corpos, plantas, objetos e espíritos ao redor.

O universo da percussão reúne uma variedade de instrumentos e alguns deles dificilmente ocuparão um aquário em um palco de igreja. É o caso do trio de atabaques Rum, Rumpi e Lé, tradicionais tambores africanos utilizados nos rituais de candomblé e em musicalidades afro-brasileiras. Os sons emitidos pelo toque dos atabaques buscam conectar as batidas do coração à Terra e têm o poder de convocar os Orixás a “baixarem” nos corpos de pessoas que podem recebê-los. Esse é um momento de “virada”, quando aquela que incorpora, dança sob os comandos da entidade, descolando-se de alguma parte de si e encarnando uma energia exterior. O som tem uma importância quase central na provocação do transe: a repetição das batidas promove uma experiência de convergência entre sonoridade e movimento, a sincronia leva a uma sensação de atemporalidade e imersão que nos levam a “subir”, gerando uma reconfiguração das nossas relações com o mundo.

No léxico musical, “virada” significa um momento de transição entre situações rítmicas diferentes, ela é produzida pelo toque em várias ou todas as peças da bateria. Em igrejas neopentecostais, as viradas não costumam fazer muito alarde, já que o som da bateria deve apenas cumprir a função de acompanhamento. A voz parece ter uma importância superior a qualquer outro instrumento e está centrada na figura mais poderosa do culto: o pastor. A partir de variações de entonações, volumes, ritmos e pausas, ela é utilizada como meio de persuasão e comoção, pregando, cantando ou promovendo curas, guiando. É também por meio da voz que os fiéis atingem aquela experiência de convergência: entre si, quando cantam juntos ou com o divino, quando oram ou fazem louvações. Em êxtase, podem emitir palavras intraduzíveis, puramente sons, os gemidos inexprimíveis do Espírito, manifestando o dom de línguas. Esse é também um momento de “virada”, quando aquela que se eleva, ultrapassa as barreiras da linguagem, murmurando sob os comandos da santidade.

A “virada” de Juliana Frontin se apropria de todos esses elementos, rearranjando-os. O aquário se esvazia e nos convida a entrar e a ver de dentro. Ele perde sua função de redoma e ganha o direito de ser uma estrutura transparente e octogonal em toda sua glória. Assume sua vocação vitrínica, pondo a si mesmo em evidência e a quem o ocupa. A bateria se converte em uma imagem produzida puramente pelo som. A “virada” se multiplica, também se convertendo em outra coisa: não mais intervalo, agora repetição. Os tambores vibram majestosos e aceleram, nos indicando uma “subida”. Quase vamos, mas somos surpreendidos por uma nova direção rítmica, então recomeçamos.

O fato do trabalho se basear em uma sonoridade suprimida do contexto das igrejas neopentecostais e estar interessado em seu significado cultural não quer dizer que ele proponha uma completa inversão da dinâmica de origem, embora a transforme. A sucessão de “viradas”, seus hiatos e investidas, as oscilações em intensidades, a manifestação dos pratos ou a ligeireza das baquetas nos guiam por caminhos tortuosos, nem sempre contínuos. E essa condição ambígua é afirmada pela ambientação da estrutura octogonal que Frontin nos apresenta: não há uma experiência totalmente individual, de introspecção, nem totalmente coletiva, de congregação – você está só, mas sendo observado por todos os passantes. Se a bateria quer ser tambor e o intervalo não quer mais ser pausa, uma língua estranha pode estar sendo criada.